Territórios: a (Re) Existência das comunidades indígenas e quilombolas no Vale do Ribeira em tempos
Revista SESC - 09/06/2020
Maio anunciou a chegada do outono, o amanhecer foi mais frio em algumas regiões e o Brasil contabilizou seu segundo mês de isolamento social. Na extensão desse país com milhares de pessoas e diversidades, muitas resistem e lutam pela sobrevivência – é o caso de várias comunidades, como indígenas e quilombolas. Nesse cenário, existem comunidades tradicionais que estão mais vulneráveis, sobretudo, por conta de uma estrutura político-social que não contempla os modos de ser, fazer e saber destes povos. Alimentação, saúde, educação e cultura são alicerces fundamentais para a construção do indivíduo e da sociedade em que ele habita. De fato, é por meio desses mesmos pilares que a latente desigualdade do país nos salta aos olhos, e que a vulnerabilidade das comunidades e povos tradicionais se acentua.
No Vale do Ribeira, por exemplo, localizado no sul do estado de São Paulo, a diversidade se apresenta na natureza e na cultura. Além de ser a maior área remanescente preservada da Mata Atlântica, a região abriga povos indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos, entre outros - um mosaico cultural rico e bem peculiar. Por tais características, em 1999, a Unesco declarou o Vale do Ribeira Patrimônio natural, socioambiental e cultural da humanidade. E se a luta pela preservação do meio ambiente e dos povos tradicionais é recorrente, com a pandemia do novo Coronavírus, o desafio de (re) existência é ainda maior.
Mesmo em meio a desafios e incertezas, a solidariedade se mantém viva. Quilombos e aldeias indígenas, no Vale do Ribeira, aproximam-se. Em vinte e um de abril, o excedente da produção agrícola do Quilombo São Pedro teve destino certo: a Tekoa Takuari. Organizada e disposta com os devidos cuidados, a carga foi transportada em segurança para a aldeia. O caminho não é tão longo nem tão duro quanto a situação que grande parte das aldeias do Vale do Ribeira têm vivido. Em territórios limitados e/ou expropriados de suas terras, os indígenas são obrigados a mudar seu modo de vida e de subsistência, reinventando e buscando novas maneiras para se alimentar, que envolvam menos mobilidade e circulação. A ação solidária do Quilombo auxilia de forma emergencial mas não definitiva.
Para tentar entender um pouco melhor o contexto e os desafios dessa população, conversamos com representantes das duas comunidades citadas acima.
Impactos na rotina da Tekoa Takuari, comunidade indígena no Vale do Ribeira
A nossa viagem começa pela Tekoa Takuari, localizada no município de Eldorado (SP). Tekoa, na língua guarani, é aldeia – mas a ideia vai para além do significado de território, contemplando modo de vida e cultura. E quem nos conta sobre a história é Ataíde Gonçalves Vilharve, ou Ataíde Vherá Mirim, representante jurídico e liderança na articulação indígena no Vale do Ribeira. A área habitada pela comunidade, formada em 2013, foi adquirida por meio do processo de compensação às aldeias Barragem e Krukutu, localizadas na Terras Indígena Tenondé Porã (situada na região sul de São Paulo), em decorrência dos impactos gerados pela construção do Rodoanel Mário Covas. Atualmente, 33 famílias, que somam aproximadamente 160 habitantes, vivem na Tekoa Takuari.
A alimentação e as estratégias para sobrevivência
A comunidade possui uma política de permanência no território que tem sido intensificada desde o início do isolamento social. O trabalho comunitário para a subsistência, por exemplo, aumentou. Sem outras fontes de renda, as famílias concentram seus esforços no cultivo de alimentos a longo prazo e na arrecadação de doações de imediato para poderem sobreviver. O que tem chegado dos municípios próximos, ainda que em pequena escala, já ajuda. “Tudo o que nós conseguimos aqui em Eldorado, estamos usando nos trabalhos comunitários da aldeia. Estamos conseguindo sobreviver, não sei por quanto tempo. As famílias estão plantando aqui e em outras aldeias também, e outros fazendo tanques para criar peixes. Quatro dias por semana, trabalhamos aqui para conseguir alimentar todas. Outras cestas [básicas] que conseguimos, distribuímos para famílias de prioridades”, conta Ataíde.
As dificuldades relacionadas à alimentação, ao Sistema de Saúde Básico e à renda indicam o alto grau de vulnerabilidade dessas comunidades, especialmente agora. O representante da Tekoa Takuari conta que a principal fonte financeira deles é a venda de artesanato e explica: “estamos enfrentando o isolamento imposto pela pandemia da COVID-19, não podendo sair para vender artesanatos. Estamos lutando, mais uma vez, pela sobrevivência das famílias indígenas.”
No início da pandemia no estado, as comunidades indígenas do Vale do Ribeira entraram em alerta, com muitas aldeias beirando a fome. A solução encontrada pelas lideranças, por meio da organização indígena Comissão Guarani Yvyrupa, foi realizar campanhas de arrecadação de alimentos e itens de higiene para amenizar o impacto. A ajuda veio de amigos e parceiros, incluindo as comunidades quilombolas, mas não foi o suficiente para resolver o problema. Com o tempo prolongado do isolamento social e as restrições, novas ações estão sendo feitas. Há arrecadações online, nas quais todos podem contribuir, com o intuito de angariar fundos para a instalação de tanques de criação de peixes, galinheiros e roças comunitárias. Apesar de mais demoradas, as medidas funcionam para a sobrevivência das famílias a longo prazo.
A saúde e os desafios da cultura
Outros grandes obstáculos são a falta de transporte e a precarização do acesso à saúde. Por isso, a comunidade tem reforçado o uso de ervas medicinais, com o objetivo de melhorar a imunidade de seus habitantes.
O que acontece no Vale do Ribeira, em São Paulo, é apenas um recorte dos desafios que comunidades indígenas de todo o território nacional têm vivido. Durante a pandemia, a principal luta indígena é pela garantia ao acesso a políticas públicas de saúde e de segurança alimentar. Luta esta que se soma com tantas outras que os povos indígenas e tradicionais travam diariamente ao longo da história.
O isolamento no Quilombo São Pedro em prol do coletivo
Seguimos na estrada e a parada agora é no Quilombo São Pedro. Fundada em 1856 pelo sr. Bernardo Furquim, a comunidade está a 60 km da cidade de Eldorado (SP), sentido a Iporanga, e é uma das poucas tituladas da região - sendo o direito dos quilombolas à regularização de suas terras reconhecido pela Constituição Federal. Lá vivem cerca de 58 famílias, compondo um total de 165 habitantes.
A proteção pelas lideranças locais
No contexto do Vale do Ribeira, as comunidades tradicionais sentem um distanciamento do Estado e das demais esferas do poder público. Diante do atual cenário nacional em relação à pandemia, as medidas de prevenção e isolamento social estão partindo das próprias lideranças. Com isso, algumas comunidades quilombolas decidiram impedir o acesso de não moradores, mesmo dos familiares que residem nas cidades. As famílias têm se mantido em suas casas, tendo contato umas com as outras (mesmo internamente) apenas quando necessário, evitando os encontros com grande número de pessoas. A saída dos moradores para o centro da cidade tem ocorrido em caso de extrema necessidade - evitando o deslocamento, sobretudo, daqueles que se enquadram no grupo de risco.
As mudanças e as novas formas de plantio
Pela cautela do contato entre as próprias famílias residentes, os sistema de agricultura têm mudado durante esse período. Os processos de plantio e colheita sempre se deram por meio do puxirão, que são atividades coletivas e fortes na cultura, e agora são feitos de forma mais isolada por cada família, apenas para subsistência. Com a necessidade de distanciamento social, o modo do fazer cotidiano dessas comunidades são impactados, e se refletem nas manifestações culturais, roças e nos modos de se articularem.
As comunidades quilombolas, em sua maioria, possuem sistemas de roça que “têm garantido a segurança alimentar para as famílias”, conta Áurico Dias, coordenador Presidente da Associação do Quilombo São Pedro. Além de realizarem trocas entre si, esse modelo garante a diversidade de alimentos. Porém, o acesso à renda tem sido uma problemática, uma vez que eles necessitam de itens que não são produzidos no sistema agrícola. A comunidade tem o turismo e a venda de produtos em feiras e na composição de merendas escolares como principais fontes de geração de renda - ambas suspensas durante a pandemia. Ademais, as famílias temem perder parte significativa da sua produção agrícola, caso essa não seja escoada.
Recentemente, como medida de emergência, o poder público autorizou a roça de coivara - roça de corte e queima, tradicional entre quilombolas e povos indígenas - que tem sido pauta de lutas há muitos anos. Essa é uma situação positiva, uma vez que as comunidades poderão fazer as roças e garantir a alimentação das famílias. Entretanto, essa é uma questão que se coloca como oportuna para o poder público, que pode vir a se isentar de responsabilidades com essas comunidades quilombolas. Além disso, mesmo com a autorização, as roças são ações a longo prazo, já os problemas de alimentação são imediatos.
As dificuldades de transporte e o cuidado da comunidade
A precarização do atendimento público, somada às dificuldades com o transporte, inviabilizam e/ou dificultam o acesso da população tradicional aos hospitais. Poucas comunidades contam com linhas de ônibus em seus territórios, entretanto, com o período de isolamento social, o poder público reduziu ainda mais essa mobilidade, com o cancelamento de meios de transporte em muitas comunidades.
A princípio, “não foi identificado nenhum caso suspeito de contaminação por COVID-19 dentro das comunidades, mas há uma preocupação latente nas lideranças, considerando a grande dificuldade de acesso ao sistema de saúde e a falta de políticas públicas que resguardem os territórios” comenta Heloisa de França Dias, que é membro do conselho fiscal da associação do Quilombo São Pedro e coordenadora Estadual da CONAQ (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas). Dessa forma, as comunidades apostam em uma articulação interna para a prevenção. Até mesmo a ida a consultas médicas é evitada, apenas atendimentos urgentes – sobretudo aos mais velhos – são indicados.
A educação e a reivindicação de acesso
Soma-se ao cenário de lutas, a dificuldade ao acesso à educação, que já é um problema nesses territórios, se intensificou com a pandemia da COVID-19. Com a falta de transporte público ou ônibus escolares e sem políticas públicas, crianças e jovens se veem ainda mais excluídos nesse momento. O ensino à distância, realizado por meio de plataformas digitais, se torna praticamente inviável. Isso porque, nesses locais, a cobertura de telefonia móvel e os serviços de internet são extremamente caros.
Segundo Luiz Marcos de França Dias, professor membro da Associação Quilombo São Pedro e educador no Ponto de Cultura Grupo Cultural Puxirão Bernardo Furquim, os estudantes das comunidades se sentem 2 ou 3 passos atrás de outros que moram nas áreas urbanas. Até o fim do ano todos terão o SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), sistema que mede o desenvolvimento da educação nas escolas estaduais da rede, e muitos estudantes estão na iminência da aplicação do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). As dificuldades de acesso às aulas podem diminuir esses diagnósticos e as chances de ingressar no Ensino Superior.
O professor comenta “o que nós quilombolas reivindicamos nesse momento é que todxs tenham as mesmas possibilidades de acesso! O isolamento social é necessário, mas retiraram todos os horários de ônibus, no caso da escola estadual, o envio de materiais aos alunos está atrasado, fator que, aliado às sucessivas ausências decorrentes da falta de transporte escolar e péssimas condições da estrada, acarretam num déficit educacional quase que irreparável para essas crianças e jovens". Há ainda casos em que as associações quilombolas não foram informadas sobre como auxiliar pais e responsáveis a respeito da nova realidade de ensino. “Não quer dizer que essas crianças e jovens não estejam aprendendo: elas estão ocupando os diversos espaços do território, aprendendo com os pais na roça, na horta, na produção de farinha de mandioca, na colheita do arroz. Mas este aprendizado não substitui o saber sistematizado, aprendido na escola, também necessário para a constituição intelectual”, finaliza.
Solidariedade em tempos de crise
A preocupação com a saúde é redobrada nas comunidades de povos tradicionais pois, além da precariedade de acesso aos direitos básicos, seus “modos de fazer” envolvem ações majoritariamente coletivas – tornando o isolamento social um grande desafio. A entrada de uma única pessoa, portadora do novo Coronavírus, nesses territórios pode significar uma reação em cadeia e levar ao adoecimento de toda a população local. E, uma vez infectado, o doente não tem a infraestrutura médica necessária à disposição com facilidade e o risco de óbito torna-se maior.
Sem o respaldo e as devidas orientações por parte do poder público, lideranças indígenas e quilombolas, como as de Tekoa Takuari e de São Pedro, têm estabelecido protocolos internos e contado com o apoio de terceiros e instituições parceiras. Entre elas, está o Instituto Socioambiental (ISA), que já atua com as comunidades quilombolas no Vale do Ribeira desde antes. Em parceria com a Cooperquivale, estão sendo captados recursos para a compra de alimentos destinados ao abastecimento das famílias de povos e comunidades tradicionais que estão passando por necessidades.
Segundo a assessora técnica do ISA Vale do Ribeira, Raquel Pasinato, estão sendo montadas cerca de 500 cestas, com produtos das roças quilombolas e peixe seco caiçara. “Essa estratégia vai garantir alimentos de qualidade para quem precisa e recursos financeiros para quem irá comercializar, no caso, os quilombolas da Cooperquivale”, explica Raquel.